19 maio 2014

Berbigão: vulgo vôngole


Não fossem os açorianos e os italianos, este molusco nativo talvez jamais fizesse parte da alimentação do brasileiro. Os pescadores da baía de Florianópolis agradecem.

por Xavier Bartaburu


O berbigão é um molusco presente em todo o litoral brasileiro. Mas só os pescadores de origem açoriana de Florianópolis tornaram-se especialistas em sua coleta. Cerca de 90% do vôngole servido em São Paulo vem daqui.

Começou com os açorianos, lá pelo século 18. Chegados à Ilha de Santa Catarina, eles descobriram, no fundo da baía, fartas colônias de moluscos que em muito se pareciam aos do outro lado do Atlântico. Pela semelhança, botaram-lhe nome português: berbigão. E dele fizeram ingrediente fundamental para os dias de lestada, quando o vento leste revirava o mar e impedia os pescadores de sair em busca de peixe. Cabia às mulheres, naquela ocasião, garantir o de comer: durante a vazante, metiam-se na baía com água nas canelas a catar os berbigões enterrados no lodo. Com eles, preparavam ensopados. Era, portanto, refeição à toa, para se matar a fome em tempo de míngua.

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Foi assim, discreto e modesto, que o berbigão (Anomalocardia brasiliana) entrou na alimentação brasileira. Não que não seja consumido em outras partes do país – a espécie é comum em todo o litoral –, mas foi em Florianópolis, graças aos açorianos, que o molusco ganhou certa relevância culinária. Não muita, diga-se: manchado pelo estigma de ingrediente sobressalente, o berbigão atravessou os séculos rejeitado pelas elites, que o tinham como uma espécie de primo pobre e insípido das ostras e mexilhões. Sobreviveu como recheio de pastel, desses de comer na praia.


Maior respeito tiveram-lhe os napolitanos, que, ao chegar em São Paulo, descobriram no berbigão o substituto ideal para os moluscos do Mediterrâneo. Pela semelhança, botaram-lhe nome italiano: vôngole. E dele fizeram o protagonista de um clássico, o espaguete ao vôngole, ainda hoje item quase obrigatório das cantinas mais tradicionais da capital. Mal sabem os paulistanos que ali, nas mesas da cidade, garante-se o sustento de dezenas de famílias no sul do país, descendentes dos mesmos açorianos que há dois séculos descobriram o berbigão nas águas enlameadas da baía de Santa Catarina.

“Noventa por cento do vôngole de São Paulo vem daqui”, assegura o chef Ubiratan Farias, também ele descendente de açorianos e principal articulador da valorização do berbigão no país. E, por “daqui”, entenda-se uma pequena área da Baía Sul conhecida como Baixio da Tipitinga. Lá, os berbigões, além de particularmente copiosos, encontram as condições perfeitas para crescer e se reproduzir: águas rasas, de pouca turbulência, onde a areia do mar se mistura ao lodo do mangue. É ali que eles se enterram, metade da concha para fora, alimentando-se do banquete de nutrientes carregado pela maré.

“Daqui pra lá tem berbigão de fora a fora”, aponta André Rodrigues de Sá, de pé na popa da canoa, com a mão espalmada sobre a baía. E o homem sabe o que diz: faz três décadas que ele e as irmãs gastam suas manhãs no mar, catando moluscos. É a principal fonte de renda da família. Saem de três a quatro vezes por semana, sempre na maré baixa. Mesmo que, às vezes, isso possa acontecer antes de o sol raiar. Quando é assim, lá vão André e as irmãs, às quatro da matina, enfiar os pés nas águas geladas do Atlântico Sul, de onde só voltarão horas depois, com pelo menos 150 quilos de berbigão no barco.



Para extrair o berbigão do fundo da baía, os coletores usam uma gaiola de ferro conhecida como "gancho". Em cada puxada, podem vir até 30 quilos do molusco - Foto: Valdemir Cunha

Houve já tentativas de reproduzir o molusco em cativeiro, coisa que até agora não se deu. A atividade permanece, portanto, puramente extrativista e artesanal. Toda a tecnologia resume-se a um apetrecho conhecido como gancho ou rastéu, que consiste numa gaiola de ferro (ou de aço) acoplada a um cabo de madeira, semelhante a um ancinho. De gancho na mão, os coletores arrancam, numa puxada só, até 30 quilos de berbigão do fundo da baía. Graças ao espaço entre as barras, apenas os moluscos adultos, com mais de 2 anos de idade, são capturados. Os mais jovens, menores, escorregam pelas frestas de volta ao leito, para garantir a reprodução da espécie.

O gancho, sozinho, pesa 20 quilos. Somados os berbigões e outro tanto de cascalho que costuma vir na gaiola, considere no mínimo 50 quilos de peso a cada puxada. Como explica Aristides Raulino, pescador há mais de 40 anos, “quem trabalha com berbigão tem vida curta”. Imagine que, pelos limites estabelecidos na área, cada coletor pode extrair até 230 quilos de berbigão in natura por dia. A média diária, claro, geralmente é inferior, mas o suficiente para comprometer a saúde física do sujeito. “Eu mesmo não tenho mais coluna. Nem braço”, diz Aristides.

Por causa do berbigão, o Brasil ganhou, em 1992, sua primeira Reserva Extrativista Marinha, a do Pirajubaé – 1700 hectares do estuário do Rio Tavares, ao sul de Florianópolis, foram destinados à coleta do molusco. Metade é área de mangue, que tem o importante papel de fornecer a matéria orgânica que dará origem ao lodo do qual o berbigão se alimenta. No manguezal vive também, em casebres de madeira, a maior parte das 23 famílias que hoje estão vinculadas à reserva, como é o caso de André. Já Aristides mora num rancho de pescadores nas imediações, fora da unidade, de frente para a baía, de onde sai com o barco para pescar tainhas, corvinas, bagres e outros peixes. Como se verá mais adiante, está cada vez mais difícil depender só de berbigão.

Somada a produção de todas as famílias da reserva extrativista, tiram-se mil toneladas de berbigão por ano das águas de Florianópolis. Embora as mulheres também participem da coleta, a divisão do trabalho nas casas e nos ranchos é clara: tão logo os moluscos chegam do mar, cabe à esposa, às filhas ou às irmãs do pescador prepará-los para a venda ou para o consumo. Enquanto isso, os homens se encarregam de serviços como lavar o barco ou limpar o motor. Como diz Maria Aparecida da Luz, mulher de Aristides, “depois que ele tá aqui, a responsabilidade é minha”. Há não muito tempo, ela inclusive levava os berbigões à peixaria, num carrinho de mão.

Uma vez em terra firme, os berbigões vão direto para o batedor, uma espécie de peneira de ferro suspensa onde o cascalho é eliminado e os bichos são lavados até que o lodo se desgarre da concha. Ali também os pequenos são separados dos grandes – ou “grados”, como são chamados por aqui. Esses são os que seguem para São Paulo, ainda na casca, geralmente vendidos a empresas ligadas ao comércio da ostra na região. Rebatizados de vôngoles e acomodados em caixas de isopor, os berbigões chegarão à capital paulista ainda vivos, menos de 24 horas depois de ter deixado o mar, prontos para enriquecer os espaguetes da cidade.


Os que ficam em Florianópolis terão destino diferente, como manda a tradição. Aqui, berbigão na concha é coisa de paulista. Come-se o bicho à moda açoriana: fervido e descascado. Tanto é que, mal chegam do baixio, os moluscos já vão para o panelão de alumínio aquecido em fogareiro. Antes, porém, deverão passar uma noite de molho, em água doce, para perder o amargor e o aroma de fumo que lhes são característicos. Depois de cozidos, os moluscos serão desconchavados à mão, um a um, pelas mulheres da casa. Cida, a mulher de Aristides, por exemplo, faz tudo sozinha. “Já descasquei até 35 quilos num dia”.

Aí sim, devidamente desconchavados, os moluscos serão vendidos a intermediários – que, como de praxe, pagam sempre quantias inferiores ao esforço empreendido na extração. Em Florianópolis, a cifra gira em torno dos 4 reais por quilo de molusco descascado. Sem o atravessador é que se sente a diferença, e Aristides, que também é membro do conselho da associação local, foi um dos poucos a encontrar o atalho. Hoje vende seus berbigões a uma peixaria do Mercado Público Municipal a 12 reais o quilo. “A gente era escravo do diabo”, resume.

Essa é uma das missões do chef Ubiratan Farias. “Quero criar uma ligação direta entre o produtor e o mercado consumidor”, ele diz. Antes, porém, ressalta a necessidade de ampliar esse mercado. E isso passa pela demolição de alguns preconceitos. “Poucos restaurantes em Florianópolis têm o berbigão no cardápio”, lamenta, sublinhando o baixo prestígio gastronômico do molusco entre a população local. Quem quiser provar algo além do pastel, deverá procura nos restaurantes tradicionais de cozinha açoriana ou esperar um convite para almoçar na casa de um pescador. Tanto em um quanto em outro, o clássico absoluto é o berbigão ensopado com chuchu, servido com pirão d´água. O que não exclui variações, como as que Cida gosta de fazer, entre elas o molusco refogado ou como recheio de empadão. “Outro dia minha mulher fez até pizza”, lembra Aristides.

A maior prova da versatilidade do berbigão se dá durante o Carnaval, quando o Berbigão do Boca, o mais popular bloco da cidade, organiza um concurso gastronômico inspirado no molusco. Na ocasião, dezenas de cozinheiros da ilha e do continente aparecem para mostrar receitas que vão do sushi ao vatapá de berbigão. Uma medida de que o preconceito, talvez, esteja começando a perder força. Enquanto ele não some de vez, o chef Ubiratan dedica parte do seu tempo brigando pela valorização do molusco e da cozinha de origem açoriana. Em 2009, conseguiu incluir o berbigão na Arca do Gosto, inventário mundial de alimentos ameaçados de extinção elaborado pela fundação Slow Food. Foi o primeiro molusco brasileiro a entrar na lista. Ao mesmo tempo, o chef diverte-se inventando receitas novas que desafiam a tradição local, ou seja, incorporando o berbigão in natura, na concha. É uma forma de combater o estigma e, também, de honrar os melhores atributos do animal.


Embora defenda a preservação da culinária tradicional dos imigrantes açorianos, Ubiratan reconhece que o hábito de descascar o bicho talvez não seja a melhor das ideias. “O valor do berbigão está na água que fica dentro da concha”, ele explica. “Ela é riquíssima em aroma, sabor e proteínas. Quando se cozinha com ela, você tem tudo isso a seu favor”. Somando-se as grandes concentrações de cálcio, magnésio, vitamina C e ômega 3 presentes na carne, temos aí um alimento que, além de saboroso, é também saudável.




Não é costume em Florianópolis consumir o berbigão com a concha. Por isso, os moluscos que não seguem para São Paulo são descascados e vendidos a atravessadores - que, como de praxe, pagam sempre quantias inferiores ao esforço empreendido na extração - Foto: Valdemir Cunha

Mas derrubar preconceitos talvez seja o menor dos desafios. Questão mais grave, tão antiga quanto a própria reserva extrativista, é a escassez de berbigões na baía. Em meados dos anos 90, tão logo a reserva foi criada, 8 milhões de metros cúbicos de areia e lodo foram arrancados do mar para aterrar parte do manguezal do Rio Tavares e abrir caminho para uma nova rodovia, que ligaria o centro de Florianópolis ao aeroporto Hercílio Luz. Sem que os pescadores tivessem sido consultados, a draga cavou um buraco de 18 metros de profundidade bem no meio do baixio da Tipitinga, onde estavam os maiores bancos de berbigão. Não fosse um projeto de repovoamento feito pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí) na época, até o espaguete ao vôngole paulistano estaria comprometido.

Ainda assim, a baía nunca mais foi a mesma. “Antes de aterrar, tu pisava no chão e grudava berbigão no pé. Era um criadouro fora de série”, lamenta Aristides. Agora, no lugar do “buraco da draga”, como dizem, os pescadores encontram 6 metros de lodo compactado, que ali caiu e ficou, sem receber os nutrientes que poderiam manter a vida no local. Ou seja, lodo morto, onde berbigão algum se atreve a morar. “Perdemos 40% da reserva”, resume Aristides. E ainda perto da orla: se antes ele pegava os moluscos ao lado de casa, agora precisa navegar até 3 quilômetros para chegar aos bancos.

E, ainda assim, é pouca a garantia de encontrar os berbigões graúdos de antigamente. Como diz Rosemari, uma das irmãs de André, “tá cada vez mais difícil achar os grados”. O fato é que não só os bancos diminuíram, como também tem mais gente atrás de berbigão. Estima-se em milhares os pescadores que vêm até a reserva extrativista, muitos do continente, coletar os moluscos para complementar a renda. E, para esses, as regras da reserva não valem. Além de ampliar a malha do gancho, de modo a capturar mais berbigões, eles também aumentaram o número de extrações diárias. “Era para ser três vezes por semana e estão tirando três vezes por dia”, reclama Aristides.

Para ele, duas coisas são importantes: mais fiscalização por parte do governo e a imposição de um período de defeso. Hoje na baía pode-se tirar berbigão o ano todo, em qualquer dia da semana. Já ajudaria, por exemplo, se a coleta fosse proibida durante o verão, quando a água mais quente torna o molusco mais frágil. No entanto, é justo no verão que a demanda aumenta, para dar conta do tanto de pastéis de berbigão que se consomem nas praias. Aristides protesta: “Não estão respeitando as leis da natureza. Os pescadores acham que podem tirar tudo agora, mas se esquecem de que têm filhos e netos”. Equalizar o estoque e a demanda, ao que parece, será o desafio para os próximos anos. O chef Ubiratan está otimista: “Vamos trabalhar para que o berbigão nunca falte. E seja tão famoso quanto a ostra daqui”.



Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/materias/berbigao-conheca-a-especie

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